Entrevista: 'Pulverizar as doses da vacina pelo país não vai ter impacto nenhum'

Iniciado por noticias, 08, Março, 2021, 09:02

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Entrevista: 'Pulverizar as doses da vacina pelo país não vai ter impacto nenhum'

Da maneira como foi planejada, a  campanha de vacinação no Brasil não vai ter impacto nenhum sobre o número de internações e de óbitos por covid-19. Pelo contrário: terá como consequência o descontrole ainda maior da pandemia no país. É isso que afirma a epidemiologista Carla Dominguez, que foi responsável pela coordenação do Programa Nacional de Imunização entre 2011 e 2019.
Para ela, espalhar pequenas quantidades de doses de vacina pelo Brasil inteiro, enquanto circula em Manaus uma nova e mais perigosa variante do coronavírus — e a cidade sofre com uma taxa de infecção superior à média nacional —, é um erro estratégico.
Doutora em Medicina Tropical pela Universidade de Brasília e mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, ela defende que a prioridade, enquanto as doses forem insuficientes, deveria ser a população do Amazonas. Em Manaus, diz a especialista, é necessário fazer uma “vacinação ostensiva”.
Além de diminuir o número de internações e mortes no estado, a medida poderia prevenir que a nova variante do coronavírus se disseminasse para outras regiões do país – o que já está acontecendo. O Amazonas já se aproxima dos 300 mil casos de covid-19 e ultrapassou as 10 mil mortes. A taxa de mortalidade no estado é a maior do Brasil e chegou a 245,6 por 100 mil habitantes, mais que o dobro da taxa nacional, que é de 115,2. Muitos pacientes morreram por falta de oxigênio, e a terceira onda da doença no estado já é factível.

De acordo com um levantamento feito por veículos da imprensa que formaram um consórcio para acompanhar os números relacionados à pandemia, apenas 3,4% do público-alvo, que são os brasileiros acima de 18 anos, foi vacinado até o dia 16 de fevereiro. A média é de quase 200 mil pessoas imunizadas por dia. Na segunda semana deste mês, porém, vários municípios, entre eles o Rio de Janeiro e Salvador, suspenderam a imunização dos idosos por falta de doses, o que pode diminuir a média.
Para mudar esse cenário, diz Domingues, o único caminho é comprar mais vacinas, inclusive de outros fornecedores. Até então, o Brasil tinha apenas doses da Coronavac e do imunizante da AstraZeneca. Mas, no dia 16 de fevereiro, o Ministério da Saúde anunciou um cronograma para aquisição de doses por meio do consórcio Covax Facility, coordenado pela Organização Mundial da Saúde, a OMS. Está prevista a compra da vacina Sputnik V, da Rússia, e a Covaxin, da Índia.
A especialista não defende, porém, que os governadores negociem por conta própria a compra de vacinas, como pretendem fazer alguns estados com a Sputnik V. “Na minha avaliação, os governadores deveriam estar pressionando o governo federal a adquirir mais doses”.
Em entrevista ao Intercept, Domingues também falou sobre o movimento antivacina e suas consequências.
Intercept – O planejamento para a vacinação contra a covid-19 no Brasil está correto? 
Carla Domingues – Estamos falando de um momento de escassez de vacinas, então teria que ter outro critério de vacinação. Pulverizar as doses e repassar 100 ou 200 para alguns municípios não vai ter impacto nenhum. Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde mandou só 5% a mais de doses para o Amazonas. E o governo do estado também errou, porque não as concentrou nos municípios mais afetados. Está havendo um erro estratégico na distribuição das vacinas, e a consequência é que vai demorar muito para haver um impacto na diminuição das internações e dos óbitos.
Qual seria a melhor estratégia?
Fazer a regionalização das vacinas teria melhor impacto, porque seria possível imunizar mais gente em um curto espaço de tempo. Não faz o menor sentido pulverizar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca [produzida no Brasil pela Fiocruz] por todo o país. A sua distribuição seria mais eficiente se fosse concentrada no Norte, principalmente em regiões longínquas, devido à logística de transporte. A segunda dose dessa vacina tem prazo de 12 semanas para ser aplicada. Portanto, daria para usar as 2 milhões de doses de forma imediata, enquanto se aguarda outras chegarem para a segunda aplicação. Dessa forma, mais gente seria vacinada.
Já a Coronavac [produzida no Brasil pelo Instituto Butantan] teria que se concentrar nas regiões de fácil acesso, em municípios com elevada ocorrência de internações. A segunda dose tem que ser aplicada em até quatro semanas. Nesse caso, é preciso guardar [metade das doses recebidas] para a segunda aplicação.
Localidades como Manaus, com elevada taxa de infecção e uma nova cepa, precisariam de vacinação ostensiva. Seria mais eficaz e poderia prevenir que essa nova variante se disseminasse para outras regiões do país.
Em alguma das campanhas que já coordenou, foi usada essa estratégia de regionalização de vacinas? 
Campanhas de gripe Influenza já foram iniciadas regionalmente por conta da antecipação da ocorrência de casos e óbitos. Então, a campanha começou antes nestes locais, a exemplo de São Paulo, Amazonas, Goiás ou na região sul.

Ainda dá tempo de mudar a estratégia da vacinação contra a covid-19?
Sim, porque vamos continuar recebendo vacinas em quantidade insuficiente nos próximos meses para atender o público-alvo de brasileiros definido pelo Ministério da Saúde. O Plano Nacional de Imunização, o PNI, não é estático. Ele precisa de uma avaliação constante de quem está coordenando a campanha. Até que se tenha maior quantidade de vacinas, deveria haver uma avaliação regional. Hoje, está claro que a prioridade é a região Norte.
Uma ação judicial movida recentemente pelas Defensorias Públicas do Amazonas e da União requereu que o governo federal compre doses suficientes para vacinar 70% da população de oito municípios do estado com taxa de mortalidade acima de 150 por 100 mil habitantes. A taxa nacional, em 18 de fevereiro, era de 115,2. Em resposta, a União alegou que não se deve “obrigar o ente federal a adquirir o que infelizmente ainda não existe" nem se deve oferecer “atendimento diferenciado diante uma situação onde a pandemia ataca toda a nação”. Qual sua avaliação sobre isso?
Não existe, porque o governo federal não está buscando novos fornecedores. A Pfizer ofereceu 2 milhões de doses para o Brasil. Se [o Ministério da Saúde] já tivesse adquirido essas vacinas, elas poderiam ter ficado nos grandes centros e haveria mais disponibilidade de envio das vacinas Coronavac ou AstraZeneca para os estados do Norte. Seria uma estratégia para evitar a disseminação, tanto no Brasil como no mundo, desta nova variante. Tudo indica que ela afeta maior número de pessoas, pressionando os serviços de saúde em total esgotamento da capacidade de atendimento à população.
É dever do Ministério da Saúde e do PNI organizar a logística de aplicação da segunda dose ou isso deve ficar a cargo de cada município?
É preciso ter uma comunicação clara e eficiente para convocar a população a retornar aos postos de vacinação e completar o seu esquema vacinal. O Ministério da Saúde poderia ter orientado a aplicação da segunda dose de forma nacional. Seria fundamental recomendar o prazo máximo de intervalo entre as duas doses – quatro semanas para a Coronavac e 12 para a AstraZeneca. Assim, haveria uma uniformização em todo o país. Mas cada município está adotando um intervalo diferente, o que dificulta a vacinação e confunde a população, pois ela vê em seu município uma recomendação e, no município vizinho, outra.
Como fazer para evitar desperdício da vacina da AstraZeneca, cujo frasco possui 10 doses e precisa ser usado em até seis horas após a abertura? 
Não sei se está sendo feito o controle de doses aplicadas por um sistema informatizado, que possa medir essas perdas. Estamos falando de 37 mil postos de vacinação, sem contar com os postos volantes que estão sendo criados. A informatização desses dados é fundamental para que seja feito o monitoramento da taxa de uso das vacinas, para evitar desperdício ou a possibilidade de vacinar pessoas fora da ordem de prioridade da vacinação.
‘Não se pode achar que uma campanha exitosa pode funcionar da mesma forma para outra’.
Não estamos acostumados a fazer campanhas com esta escassez de vacinas. Por isso, o planejamento é fundamental para que a vacinação seja exitosa. A avaliação e definição objetiva da população-alvo a ser vacinada é necessária neste momento.
Como deve ser feita a vacinação em pequenos povoados cuja quantidade de idosos com mais de 80 anos, que é o grupo prioritário do momento, é muito pequena?
Localidades com baixa densidade populacional poderiam ter ficado para um segundo momento, para garantir o envio de mais doses e concentrar maior número de pessoas a serem vacinadas, ao invés de definir a vacinação de um pequeno grupo populacional. Nessa situação que você descreve, é preciso convocar pessoas idosas com menos idade, por exemplo, até 60 anos. O que não podemos é ter desperdício de vacinas.
A senhora esteve à frente do PNI de 2011 a 2019. Quais campanhas de vacinação coordenou e que estratégias foram utilizadas?
Como diretora adjunta do Departamento de Vigilância Epidemiológica, apoiei a coordenação da campanha nacional de vacinação contra o sarampo e a rubéola, em 2008, e contra o H1N1, em 2010. Posteriormente, como coordenadora do PNI, atuei em todas as campanhas de vacinação realizadas contra o sarampo, a poliomielite, a febre amarela e a influenza [gripe] realizadas no período de 2011 a 2019. Para cada campanha, houve um planejamento e estratégia definidos de acordo com a situação epidemiológica da doença. O importante é entender o problema a ser enfrentado e definir medidas específicas para cada um. Não se pode achar que uma campanha exitosa pode funcionar da mesma forma para outra.
Corremos o risco de perder o posto de referência mundial em campanhas massivas de vacinação?  
Não estamos em uma competição. Muitos países, apesar de terem vacinas em estoque, como é o caso dos Estados Unidos e da França, estão tendo muita dificuldade em avançar na vacinação das suas respectivas populações, por não terem a mesma expertise do Brasil em realizar grandes campanhas. No entanto, países como Israel e Emirados Árabes estão conseguindo imprimir um bom ritmo à vacinação. Países que se organizaram [comprando vacinas e planejando a campanha com antecedência] estão conseguindo fazer uma vacinação efetiva.

Para garantir que a vacinação seja realizada de forma mais célere na população-alvo definida pelo Ministério da Saúde, é fundamental que haja um cadastramento prévio. Isso evita filas, aglomerações e impede que pessoas que não estão incluídas na campanha sejam vacinadas indevidamente. Da mesma forma, faz-se necessário um esclarecimento de como e onde será feito esse cadastramento.
Considerando a forma como está ocorrendo a vacinação contra a covid-19 e a existência da nova variante surgida em Manaus, temos chance de controlar a pandemia no país? 
Só teremos o controle da pandemia quando pelo menos 70% da população brasileira estiver vacinada. O governo federal tem que adquirir mais vacinas e há outros fornecedores dispostos a vender. Não podemos ficar no final da fila, sob pena de termos uma campanha de vacinação que irá durar pelo menos um ano para garantir que todos os grupos definidos pelo Ministério da Saúde sejam vacinados.
No ritmo que estamos hoje, quanto tempo levaria para vacinar 70% da população? 
O Ministério da Saúde definiu que irá levar de 12 a 16 meses para vacinar 70% da população. É muito tempo. Precisamos acelerar o processo de vacinação para alcançar mais pessoas em curto prazo de tempo, sob pena de continuarmos a ter elevado número de casos, internações e óbitos em todas as regiões do país.
‘O SUS sabe vacinar, e a população quer ser vacinada’.
Na sua avaliação, qual o maior erro do governo federal na condução dessa pandemia? 
Não ter adquirido mais vacinas. Só temos dois laboratórios fornecendo para o Brasil. Também é preciso ter uma condução nacional sobre as estratégias de vacinação. É preciso estabelecer critérios claros, sob pena de haver dificuldade no controle da vacinação. É fundamental a identificação da pessoa vacinada, com o registro em um sistema nominal, visando acompanhar a evolução da vacinação e o uso adequado das doses. Ao mesmo tempo, esse sistema deverá acompanhar a vigilância de eventos adversos para garantir a segurança da vacinação.
O SUS sabe vacinar, e a população quer ser vacinada. Cabe aos gestores organizar o processo.
Alguns estados, a exemplo do Maranhão, começaram a se mobilizar para comprar vacinas por conta própria. O que acha disso? 
Na minha avaliação, os governadores deveriam estar pressionando o governo federal a adquirir mais doses. As compras individuais dos estados poderão gerar o turismo da vacinação, como já estamos vendo hoje, com cada município fazendo sua estratégia de vacinação.
‘A OMS considerou a hesitação em se vacinar como uma das dez maiores ameaças globais à saúde’.
Nos estudos realizados na fase 3 para as duas vacinas que estão sendo utilizadas no país até este momento, não foi verificada a possibilidade de intercambialidade. Portanto, todas as pessoas deverão tomar as duas doses da mesma vacina. Isso exige um enorme esforço e organização dos serviços de saúde. Se cada dose for feita em uma localidade, como será este controle? Não acredito que estratégias locais irão resolver o problema. Por isso, é importante termos um plano nacional que defina todo o processo de vacinação e que todos os entes federados sigam as orientações.
O movimento antivacina já havia começado antes da pandemia e contribuiu para reduzir a adesão às campanhas de vacinação. Por que isso ganhou força em pleno século 21?
Em decorrência da diminuição da circulação de diversas doenças imunopreveníveis, em função do próprio sucesso das ações de vacinação em todo o mundo, a prevenção passa a ser colocada em segundo plano, acreditando-se muitas vezes ser desnecessária. Em 2019, a OMS considerou a “hesitação em se vacinar" como uma das dez maiores ameaças globais à saúde.
Como não existem mais casos de muitas dessas doenças, passam, então, a prevalecer as notícias da ocorrência de eventos adversos relacionados à vacinação. Surge daí o medo de que as vacinas causem reações prejudiciais ao organismo. Esses eventos, na sua imensa maioria, são leves, como dor e vermelhidão no local da injeção ou mal-estar, cansaço ou febre. Mas isso tem servido de argumento para muitas pessoas não se vacinarem ou não vacinarem seus filhos.
Outra questão é o aumento da disseminação de notícias falsas nas redes sociais. Surgem teorias da conspiração de que as vacinas foram criadas para "chipar as pessoas", para aumentar o faturamento da indústria farmacêutica ou mexer no sistema imunológico dos indivíduos. Frases com apelo emocional e apelativo, sem nenhuma evidência científica, amplamente compartilhadas por aplicativos de mensagens confundem a população e criam pânico em torno dos possíveis efeitos colaterais.
O que pode acontecer de pior se esse movimento ganhar mais força? É possível que alguma doença devastadora e que já estava erradicada volte?
Os baixos índices na vacinação infantil com a vacina tríplice viral — que oferece proteção para sarampo, rubéola e caxumba — contribuíram para o retorno do sarampo no Brasil. Em 2020, houve o registro de mais de 8 mil casos, com a ocorrência de sete óbitos em crianças menores de um ano de idade. Esse fato fez com que o Brasil perdesse o título de área livre da circulação do vírus do sarampo, recebido em 2016.
Qualquer descuido é suficiente para que as doenças evitáveis por vacinas voltem a circular no território nacional. Poderemos ver esse fenômeno acontecendo com a rubéola, a poliomielite, entre outras doenças que já estavam controladas, se as coberturas vacinais se mantiverem baixas na maioria dos municípios brasileiros.
Em 2020, todas as vacinas do calendário infantil atingiram coberturas vacinais em torno de 70%, quando a meta estabelecida é entre 90% a 95%. A situação é grave, e precisamos restabelecer os elevados índices alcançados até pouco tempo atrás.
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